quinta-feira, 19 de julho de 2012

a minha viagem (2005)

.
Não vejo dia para me ir embora
do ar que sorvo e da sombra que me aperta,
mas sempre que me ponho à janela
passa a ser dentro o que antes era fora.

Perpétuo prisioneiro, a minha cela
ambula e reconstrói-se a toda a hora;
e quando me dirijo à sua porta
derramo em luz a dimensão da espera.

Não há segredo, então... a vida inteira
procurei o tesouro mais escondido
em lugares que nunca visitei,

para agora entender desta maneira
que por trás dos meus olhos há sorrisos
e por trás destes a mulher que amei.

--------------------------------------Lisboa, 2005

quarta-feira, 18 de julho de 2012

palavra exacta (2005)

.Palavra que, de pronta, te regresse
- que é dela, ah como hei-de procurá-la?,
quanto dela hei-de pôr na minha fala
se todo o meu segredo te aborrece?

Meu amor - quando, para que te interesse,
me valeria a pena pronunciá-la?
Quão próximo de ti, que tom, que sala
para abrir espaços ao que me apetece?

Palavra que, de exacta, me descubra
sob o teu gesto rude a noite rubra
- existe acaso? ou esse olhar é tudo?

Espero? Avanço? Continuo mudo?
Ou és possível, diz, mulher cansada,
na esquina ignota de uma só palavra?

--------------------------------------------Oeiras, 2005

domingo, 15 de julho de 2012

equivalências

Antigamente, eu gostava muito de ir a exame: dava umas explicaçõezitas para sobreviver e vivia de ir a exame. Pelas minhas contas, fiz entre 60 a 70 cadeiras na Universidade de Lisboa, mas exames foram muitos mais. É que eu não gostava de estudar tudo e por isso reprovava muito. Além disso, também ia tentando melhorias, Às vezes com sucesso: tanto, que conseguia um 11.

Eu só não sabia que, no meu caso, tanto exame não servia de nada: aprende-se muito pouco quando não se tem paixão por nada. Por isso ando agora tão feliz com esta história do Relvas e todos os futuros que isso implica.

A vida cá fora custa muito, claro que equivale. Aceitar isso é um primeiro passo para aceitar o contrário: que as cadeiras feitas na faculdade também têm de equivaler à vida cá de fora. Não sou muito bom em contas mas vejam lá se não faz sentido: metade dos meus créditos no curso de química, troco-a pela arte do engate e, se a comissão de equivalências quiser, também por algum jeitinho para beijos à maneira. Dizem que é bom saber beijar. Depois, a outra metade dos créditos, posso trocá-la por alguma ciência de cama: dizem que é uma ciência fixe.

O curso de psicologia é que não sei bem para que servirá, mas olhem, eu até trocava por uma casa. É isso: uma casinha. E por um carrito, já agora. Se não for pedir muito.

Entretanto, ponho-me a fazer outro curso. Não vá começar a querer de mais.

sábado, 14 de julho de 2012

os cães da tua boca (1992)

À porta, à minha chegada,
à hora, à palavra esperada,
atiçaste os cães da tua boca;
e nunca mais ninguém ouviu
à porta a minha chegada,
à hora a palavra esperada;
e nunca mais,
à tua porta,
à palavra esperada,
atiçaste os cães da tua boca.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

asas

-
Dizem que nunca na vida
prendes o passo, que nem
sequer pensas no regresso:
pois darias por perdida
a alma inteira, pois não tens
gosto no que tens por certo.

Dizem mais: que sobrevoas
o lastro do que persiste
ao largo do que acontece,
que ninguém te vê à toa
disto que hoje nos faz tristes
e que ontem nos trouxe inertes.

E dizem que de futuro
darão sonhos ao teu nome
e o teu nome às madrugadas:
mostraste, acima de tudo,
que um dia quem nunca pôde
há-de por fim abrir asas.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

almoço (2005)

Sentamo-nos à mesa para o almoço,
impensáveis jantares, cama extinta,
cuidando o que dizemos um ao outro,
atentos sempre ao que magoa ainda.

Eu desenvolvo-me em minuto e pouco,
e tu, se tanto, num minuto e trinta,
se omito o meu percurso mais sinuoso,
de ti, que exibes mais, espero que mintas.

A despedida é rápida e sem história:
parecemos bonecos sem contexto
fingindo um beijo ao largo das orelhas.

E a madrugada a visitar-me insónias!
O cadáver do nosso à tarde veio
para pintar o nosso nas estrelas...

_______________________Oeiras-Lisboa, 2005

segunda-feira, 9 de julho de 2012

um homem qualquer

As loucuras que eu teria
feito por esse homem; as
muitas que fiz; quanta vida
já prendi às suas asas.

Mesas. Camas. Luzes. Tectos.
A busca em torvelinho; os
filhos que nunca tivemos;
a roupa de corpos nus.

O mundo ao seu nome antónio
correndo-me sob os pés;
toda a estação de comboios
que tendia a nossa pele.

E hoje ao passar, nos meus olhos
passou um homem qualquer.

domingo, 8 de julho de 2012

o muro (1990)


Eu não sei muito sobre as causas
das coisas.
Aprendi a prever a noite
quando o sol se inclina por trás da minha janela
e pouco mais.
O dia, nunca o vejo nascer:
o meu ser nocturno não tem ânsias de luz.
À sombra do muro que me cerca
e por trás das frestras que o tempo abriu
passo muitas horas da minha vida
a contar as horas que a rotina gasta.

Nunca passei nenhuma fronteira
porque sempre houve luar
e eu nunca trago identificação.
Por isso fico onde estou e ninguém me tente;
já estou farto de partir a alma
em loucas correrias e tropeções
por caminhos acidentados
que me levam a lugar nenhum,
que é o ponto de partida.
Quem quiser, que vá sozinho.
Eu fico aqui, a tapar os buracos.

----------------------------------------Lisboa e 1990

sábado, 7 de julho de 2012

ir andando

Não sei explicar porquê, estavas em minha casa, sentada à minha mesa. Mas parecias ter pressa em partir.
Eu tentava ordenar um monte de folhas impressas; mas sempre faltavam páginas e sempre me punha a desmontar tudo com a esperança de as encontrar no recomeço da tarefa. Ou seria outra a esperança, a de que não te fosses embora por excesso de atenção.
Tenho de ir andando, disseste baixinho.
Estás com fome, não estás?
Fui ao frigorífico, tirei dele com que preparar-te uma sandes e um sumo.
Não, não tenho fome.
Tinhas de ir andando.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

mon amérique à moi

-
Dizem os jornais que na América se têm avistado sereias.
Mas é mentira que se avistem sereias. E é mentira porque só há uma. Durante algum tempo, de quando em quando, ela dava à minha praia; e encantava tão bem que todas as suas melodias acordavam futuros.
Um dia, no entanto, deixou de fazer alto mar minha praia minha praia alto mar; e garantiram-me os marinheiros que era impossível avistá-la: ela agora estava tão mulher que se instalara definitivamente no fundo das águas.
Pois, pois... Com que então na América. Vou despachar-me que o avião parte daqui a nada.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

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Antes, sempre que pedia a alguém que não partisse - alguém partia. Aprendi. E agora que a ninguém peço que fique - ninguém fica.

terça-feira, 3 de julho de 2012

14.06.2012 - 03.07.2012

Perguntaram-me por ti, respondi que já não vivias comigo, apressei o passo. Ao virar da esquina, as lágrimas corriam. Tenho deixado a guitarra ocupar o teu lado da cama.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

aqui (1992)


o fui eu quem embarcou
no meu sonho, à tua passagem,
tanto frio, tanto frio...
Foras brisa vespertina
ao fim de mais um destes dias
(apenas e tudo isso)
e, então sim, então fora eu.
Foste tu
quem tiritou o sonho.

domingo, 1 de julho de 2012

segredo (1989)

.
Ouvi um segredo
que não era meu.
Disse-o o Pedro
ao Bartolomeu.

Não sei que me deu,
acerquei-me a medo
e aconteceu
ouvir o segredo.

Fiquei boquiaberto,
aterrorizado,
e se estou bem certo

do que disse o Pedro,
esperem sentados:
não digo o segredo.

-------------------------Lisboa e 1989.

como a tua vontade queira (1992)

.
não espero
     onde a vida faz esquina contigo
que me espertes deste esmaio
nem me vou prolongar por atalhos
    
onde o sonho enlouquece e quer
não vou adormecer da espera nem quando
     a minha distracção te esquecesse um dia

pois que tenho vinho
     para as nossas taças e muitas mais
bebamos sobre revoltas e desassossegos
    
que até nós me trouxeram
e a um canto das horas como a tua vontade queira
     que me abraces neste fim de tarde
     e nada mais seja à minha maneira


-----------------------------------------------------------LISBOA E 1992.

palavras como aves (1991)

Pensei dar-lhes o nome de rolas
que nas nossas memórias ficasse;
têm a textura das aves em fuga
e o desejo de fuga das aves,
o arrulho das noites em espera,
o aroma impreciso do que há-de.

Porque o amor nesses dias poalhava
de mistérios teu corpo sem dono,
quis mantê-las em conchas de mão,
concebê-las em sonos de sonho,
percorrê-las enquanto houvesse onde,
conhecê-las em quandos de outono.

Mas agora que tudo já sobra,
que faço eu do que nunca foi meu?
Se já nem o meu corpo é de aqui
que palavras serão mais que nada?
Se algum dia houver nós outra vez,
há-de ser em palavras como aves;
pensei dar-lhes o nome de rolas
que nas nossas memórias ficasse.


---------------------------------------------lisboa e 1991

sábado, 30 de junho de 2012

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Mais iniciativa implica mais rasteiras. Mas só no-las passam porque sempre nos levantamos.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

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Hoje acordei como era - e era é o que sou.

esta triste alegria de ser triste (1993)

Na sala o giradiscos ainda risca
as velhas músicas do nosso Brel
enquanto a Lady, sempre tão arisca,
ronrona sonhos de tapete e mel.

Como antes, os amigos para a bisca
aparecem às sextas com o farnel
e a Nena descarada pisrepisca
os olhos às escondidas do Manel.

No meu quarto sombrio ainda hoje
soluço atrás da lágrima que foge,
oiço chover no dia em que partiste;

e não posso esquecer a tua voz
magoada criticar-me, quando a sós,
esta triste alegria de ser triste.

.......................................................Lisboa, 1993

sábado, 23 de junho de 2012

sonolentalentalisboamente

tanto ar para tão desencarnado pouco sangue

mas a bomba bate
incertinha
lenta
lentalenta
no meu peito solitária

por que se enchem assim os pulmões?
por que
se procura o suspiro
em cada
minuto de
vida?

quinta-feira, 21 de junho de 2012

quadra 58

.
Amo o que ao mundo faz falta,
o que no mundo vai bem,
e se algum medo me assalta
é porque te amo também.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Portugal 3 -Dinamarca 2

O primeiro golo chegou distraído. E os dois seguintes e quase  o quarto. Ao quinto, no entanto, esticámos o esquecimento num grito breve. Uns minutos depois, a verdade regressava.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

04.06.2012 - 13-06-2012

Olá, Barbinhas.

Nestes últimos dias, a certeza de que nada importa senão a sorte. Habita-me o coração uma cíclica redescoberta de ausências irremediáveis: de ti, da mulher que amo, de mim.
Tenho tantas saudades de quando os teus latidos breves me despertavam para a rua... Um abraço demorado e grande, querido, como aqueles em que me oferecias toda a tua paciência.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

o seu a seu dono

Expulsei, aproveitando uma das tuas ausências, os bonecos que na cama ocupavam o meu lado.
Também fui eu quem bebeu o pisang ambon todinho e quem reencheu a garrafa com champu de maçã verde.
E cometi outros crimes no teu quarto. Eu só não posso confessar a inesperada deschocolatação dos teus dias.





segunda-feira, 4 de junho de 2012

domingo, 3 de junho de 2012

12.05.2012 - 03.06.2012


Finalmente e quase um mês depois, o Bê-Dê comeu toda a papa da travessa. Fiz-lhe um arrozinho com pescada, misturei cenoura e caldo Knorr, como a veterinária aconselhou, e sob o efeito até-que-enfim do anti-histamínico ele foi de esquisito a decidido, passando por dois ou três estados intermédios. Acabou a olhar por mais.

Tenho corrido muito pouco e voltei ao álcool. Hoje abusei de uma mistela de que nunca te falei porque nos doze anos da nossa vida a dois eu tinha-a posto de lado: não sei porquê, saí por um gin tónico, e depois outro, e outro e mais outro. Não estou bêbedo mas estou bastante mal-disposto e de carteira vazia.

De resto, vou preparando o estio e os seus latidos com muito trabalho. E isso não tem narrativa.

Um abraço dos antigos, meu amor.

sábado, 2 de junho de 2012

só afrodite me guarda

.
Ao invés do que parece
não sou de ontem nem da casa
nem do arrepio na pele
sob a mão que desce rasa.

Não de ti, não dessa lua
que escondeste e eu dormitava,
não da tarde que ainda é tua
mal desponta a madrugada.

A minha paz, encontrei-a
nesta ânsia do que me falta
e em saber que, vida meia,
só Afrodite me guarda.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

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Pesquiso "A Decadência dos Olfactos" no Google e vejo que Viktor, Vilna e Kaina têm a feliz natureza do renascimento. Sorrio: pus neles toda a alma que tenho.

terça-feira, 29 de maio de 2012

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Em redor do meu corpo, até os chorosos riam. Se eu pudesse, morreria de novo.

first we take Lisbon, then we take Moscow


Angela Merkel deixando escapar os planos da Alemanha: o Quarto Reich será tão vasto que a capital terá de ser transferida de Berlim para Moscovo. Está a correr bem.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

haikai xv

tenho hoje no teu retrato
a confirmação de que também o tempo
se pode guardar nos bolsos.

sábado, 19 de maio de 2012

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Fosse eu protestante, judeu, muçulmano - tivesse, enfim, respeito pelo meu tempo. Mas não, sempre fui católico em pele de agnóstico, desculpem qualquer coisinha.  Que raios, ao menos fosse budista...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

.

A vida faz-se de fazê-la,  não vale a pena demorarmo-nos sobre o que não será se ou sobre o que teria sido se. Que a indecisão e o arrependimento se limitem a apontar-nos o sofrimento desnecessário.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

30.04.2012 - 11.05.2012


Estou muito preocupado com o Bê-Dê, há três dias que mal come. Lá ando a bater às capelinhas, a tentar juntar umas coroas para levá-lo ao veterinário. Ponho-me a pensar e ando nisto desde que me lembro, sempre a torcer para que não haja nenhuma urgência de euros, sempre a ter de pedir ajuda quando essa urgência aparece, sobretudo quando são os meus bichinhos que estão em causa.

Desconfio que ainda estarias vivo se eu tivesse sido um pouco menos pobre.

Já tenho comigo um exemplar do novo livro. Gosto do objecto mas falta-me coragem para reler o texto. Terá uma ou outra gralha, têm sempre. E continuará a provocar, à parte a indiferença, reacções díspares e tentativas de resumo da minha escrita. Para uns, o meu valor maior está na construção das personagens e sou um poeta menor; mas também já me disseram que não passo de um razoável poeta armado aos cucos, que não percebe nada dos outros e que, enfim, deveria manter-se no seu cantinho. Alguns, ainda, acham-me um bom escritor e ponto. E, como não, há quem já tivesse tido a coragem de me dizer que sou uma merda nisto das letras. Confesso que não é fácil ouvir - porque escrever é única coisa a que me vou ajeitando.

Bem... a única talvez não, que agora vem a notícia da semana: ontem fiz dez tórridos e inclinados quilómetros em 43m22s. Nada mau para o teu velho, hein?

Ia morrendo.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

que inútil o meu tormento


Manhoso, egoísta, cruel,
esse deus em que eu te quis
ainda baixa ao papel
a ver se o  fazes feliz.

Acredita ele que assim
o compreenderás melhor,
que só através de mim
é que o saberás de cor.

Mal se distraia um momento,
hei-de apagar todo o poema.
Que inútil o meu tormento
se tu segues tão serena...

segunda-feira, 7 de maio de 2012

atrasavas-te


Atrasavas-te. Eu à esquina
sempre em busca do teu rosto
e desse olhar de menina
que, dizem, ainda tens posto.

E atrasavas-te. Ao contrário
do que é costume, eu escondia
nas parangonas dos diários
os estragos da minha vida.

Mas atrasavas-te. E viesse
o café que viesse, e fosse
no teu ar o ar que esquece
- pouco importa, eu nunca soube.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

fundo

.
A verdade é que os amigos
já não te batem à porta,
que o vaivém do amor antigo
é hoje vai que não volta.

No sofá dos dias planos,
nem televisão tens visto,
e é tão grande o teu desânimo
que até desistes dos livros.

Vives de pão, enlatados
e margarina vaqueiro;
isso e o peso do passado
são o teu futuro inteiro.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

amor tão certo


Voltou a pegar no mundo bem depois do meio-dia, sempre aquele olhar defunto de quem já nada aprecia.

E, no entanto, confessou-me que o comprimento da cama é todo feito de um nome e da certeza de que ama.

Que só dormindo, aliás, e em sonhos te guarda perto, que a vigília nunca traz o prémio de amor tão certo.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

16-04-2012 - 29.04.2012

Grande notícia: a mãe não vai ter de fazer quimioterapia. Para festejar, fomos almoçar fora. Há vários meses que não metia cadáveres à boca, o salmão grelhado não me caiu nada bem. Ou terá sido o vinho barato? Fosse como fosse, era um dia especial e bebi a parte que me cabia e a que não.

Anteontem, pela primeira vez neste três meses de sem ti, acordei no teu lado da cama. Sobressaltei-me primeiro, por pensar que podia estar a magoar-te, gostei depois de ocupar com o meu sono o espaço do teu. Sorri do calor que tantas vezes circulou entre os nossos corpos.

O meu segundo romance já tem lançamento marcado mas não me apetece falar do assunto. Gosto muito de escrever, tu bem sabes, quantas vezes interrompi os nossos abraços para apontar uma frase - mas que importância tem para os outros o que eu escrevo? Desconfio que, tarde ou cedo, virá à tona o meu exercício da vaidade. Entretanto, na maior parte do tempo estou lúcido e não espero nada.

Tu percebes, querido, foste tu que me ensinaste a querer cada vez menos.

sábado, 28 de abril de 2012

pieds bourgeois


Há pouco mais de seis meses ofereceram-me uns ténis para correr. Setenta euros, pelo que vim a descobrir, o que muito me sensibilizou: a carteira do ofertante não é tão abonada quanto isso. Nunca na vida tinha calçado tão caro, nem de perto; nunca na vida me fora o chão fácil assim.

Ontem, estava eu a meio do treino, caiu-me em cima a chuvada do meio-dia. A água nunca me fez desistir de nada, antes me incita a continuar como se fosse o meu ambiente natural, e por isso continuei a papar as léguas, completamente encharcado. Mas comigo também se encharcaram os ténis, pelo que tive de correr hoje com o meu antigo par de... sete euros.

Descobri que os meus pés têm sido excessivamente mimados: lamuriam-se agora de meia hora de obstinada destruição. E, cada vez mais burgueses, anseiam por que faça bom tempo e os outros ténis sequem.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

para uma ciência do adeus


Quantas vezes morre um homem
antes de morrer de vez?
Quantos dias e por que ordem
vão desfazendo o que ele fez?

Quantos sonhos são precisos
para que vá devagar?
Para estender-lhe o sorriso,
onde temos de acordar?

Como reter os seus rumos
em rumos que sejam nossos?
E como fazer-lhe o luto
sem nos descobrirmos mortos?

quinta-feira, 19 de abril de 2012

barba e não só





Uso barba desde os dezasseis e este hábito vem da minha enorme admiração por Camões. Mas hoje à tarde acelerava as pernas pelo quarteirão e um senhor dos seus sessenta fez-me sorrir por me comparar com outro barbudo:

Eh pá, o Antero de Quental a correr aqui no quarteirão.

Agora que se esvai a euforia do pós-exercício dou por mim a pensar que também tenho algo de Antero, sim, além da barba, da testa leporina e do nariz grado. Não a filosofia nem a arte, mas o impulso para acabar com tudo isto.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

nem três horas

Lídia veio demasiada
bater-me à porta hoje à tarde,
os olhos postos em água
e na voz tudo o que sabe.

Estendeu as mãos exaustas
de impotência com saudade
e buscou no que me falta
o consolo que lhe cabe.

Mas como a lua trouxesse
a promessa de outro dia,
ainda nem eram sete
e já de mim se esquecia.

Às oito bateu com a porta
porque eu era coisa morta.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

27.03.2012 - 15.04.2012

A mãe está a recuperar bem mas ainda não sabemos se precisará de fazer quimioterapia: os resultados dos exames só chegam no dia 26.
Parece muito cansada para algum dia voltar a trabalhar como antes. As últimas notícias não são boas: quando, aqui há uns anos, estava prestes a reformar-se, aumentaram a idade da reforma para os 65; agora que tem quase 64, dizem que a partir do fim do ano a idade da reforma passa para os 67.

Tenho-me esquecido de te dizer que, desde a tua partida, o Bê-Dê prefere estar em casa dela. Talvez nesta nossa lhe falte alguém que organize o espaço e o tempo. Tu eras óptimo nisso. E a mãe também.

Tenho jogado um pouco mais de xadrez - lembras-te?, aquela coisa que às vezes eu punha junto de ti, num canto do sofá, aos quadradinhos pretos e brancos e com muitas pecinhas soltas - só que no computador. o sou grande coisa. Gosto de pensar que um bom jogador de xadrez tem de ser inteligente mas que uma pessoa inteligente pode não jogar bem xadrez.

Às vezes corro até uma livraria que me permita folhear. Perdi muito do gosto antigo e, do que vou lendo, parece-me que a nova geração de autores é boa mas empolada na quantidade e na qualidade.

No fim do mês, estará pronto o nosso segundo romance. Tu sabes, neste não entram cãozinhos como no primeiro, onde tu e a Bonita estavam entre as personagens principais. Mas digo-te agora em segredo que o seguinte já está guardadinho na gaveta e tem um cãozinho quase tão giro e meigo como tu.

Não te esqueço, meu amor.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

como se fosse outro acaso

Estio morno. Sol deitado.
Voo rente. Sombra larga.
A indolência do passado.
O futuro do que estagna.

O suor do homem que nisto
desliza a mão pela frente.
Toda a alma do seu respiro
no socalco do presente.

E se vier a maior paz
para fim do nosso estado
- sorrir por tudo, aceitar
como se fosse outro acaso.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

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No princípio de maio se lança e era até o ano passado o mais árduo e solitário dos meus exercícios engavetados. Há já quatro anos romance feito, acompanhava-o ultimamente outro quarto de resma.

domingo, 8 de abril de 2012

artifício

Por menos voltas que der
a pena que em mim ciranda,
nunca fica no papel
o pensamento que o mancha.

E mais: o grau do artifício
é sempre tanto e tamanho
que toda a frase é delírio
e nenhum verbo sai plano.

Por isso, pouco me importa
que gozes com a redondilha:
se a palavra é sempre torta
ao menos que seja minha.

.

Nunca tinha trepado escada assim e isso era mau. Encontrámo-lo ofegante no último degrau.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

para que fosse casa

.
contar as paredes e pressentir o tecto
era começá-la
e na verdade quase parecia
nas mobílias do quarto e no preenchimento da sala

da cozinha chegava o restauro do sol
e o banho compunha os caboucos da vida
no entanto aqui nunca me conheceste
aqui sempre faltou o suspiro e eu saber que faltava

quinta-feira, 5 de abril de 2012

década

Há dez anitos, nem tanto, 
punhas a vida em cadernos
e os cadernos nesse canto
dos amores ainda eternos.

Há mais ou menos cinco anos
abandonaste os papéis
e os anseios mais humanos
no canto aos dias cruéis.

E agora entregas a chave
da gaveta que te sobra
pois não há nada que trave
a tua última manobra.

quarta-feira, 28 de março de 2012

balelas de escritores

A boa escrita, diz por aí quem julga fazê-la, exige imensa leitura. Conclusão minha: coitadinhos dos escritores antigos, que nem leram uma centésima parte do que eu, paupérrimo leitor e escritor contemporâneo, já li. São todos piores do que eu e mil vezes piores do que essa catrefa de bons escritores que anda por aí a papar livros.

A boa escrita exige, isso sim, a leitura - atenta, apaixonada e na idade melhor - de meia dúzia de bons livros. Mas, acima de tudo, assenta numa incapacidade, com várias e complexas explicações, para  guardar segredos. Se depois se lê mais ou menos, isso já é coisa ao gosto de cada um.

Já nem falo da necessidade, também tão apontada, de viajar muito. Essa é outra balela que não resiste à análise de inúmeras biografias de grandes autores.

terça-feira, 27 de março de 2012

16.03.2012 - 26.03.2012

A mãe veio hoje para casa, depois de quase onze dias no hospital. A operação correu bem mas o recobro foi um pouco difícil, com muitos enjoos, vómitos e tonturas. Descobriram, depois, que se passava o que muitas vezes se passa depois de uma cirurgia: uma eliminação acentuada de ião potássio pelos rins. Assim que lhe começaram a repor aquele ião, ela começou a melhorar.

Não corri esta meia-maratona de março. Não me senti com força para tanto povo, embora há duas semanas tenha feito, num treino solitário como todos os meus, menos de duas horas em 21 quilómetros e meio, um terço deles em subida bem acentuada. Creio que na meia-maratona de ontem, toda plana e a descer, seria bem capaz de fazer menos da hora e cinquenta. Pois se na de Dezembro, mais difícil que esta, gastei uma hora e cinquenta e cinco sem qualquer treino... Ainda estavas aqui, lembras-te?

Tenho pensado muito no primeiro ano do nosso longo encontro, esse ano em que não soube cuidar de ti. Espero que os outros onze, e sobretudo os últimos oito, tenham deixado no teu coração a marca indelével do meu amor. E espero um dia poder sentir no meu o teu perdão.

Se estivesses aqui, fazia-te festas até adormeceres e mais festas depois que não te acordassem.

domingo, 25 de março de 2012

haikai xiv

um pardal entre pombas:
de olhos no chão e mãos nas costas
a patrulha da fome

terça-feira, 20 de março de 2012

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nós e o velho relógio:
entre os dois traços de uma hora
eram cinco os segundos

sexta-feira, 16 de março de 2012

03.03.2012 - 15.03.2012

Em 2011, não me passava pela cabeça que o teu 2012 viesse a ser tão pequeno. Vamos a meio de março e reparei que todas as datas me saem com um ano de vida: vou remendar agora as que puder.

A mãe foi internada hoje e desta vez parece que para operar. Diz que no Santa Maria passa uma grande seca, está num quarto com outra pessoa que não lhe liga nenhuma e parece que se ressente. Só agora reparo: sou mais parecido com o pai - tu não conheceste o pai, vieste viver comigo meio ano depois de ele morrer e por isso eu não pude ser logo teu amigo. O pai gostava de estar só, como eu. Espero é que não tenha sido pela mesma razão que a minha: uma culpa ancestral em ocupar o tempo e limitar o espaço dos outros.

Não sei, ninguém sabe o que se passa com o meu sistema circulatório: vive em tensão permanente, 17-10, e não sai daí nem com medicamentos. Mas creio que um dia se descobre, e digam o que disserem, a verdade será apenas uma: faltas-me..., não há noite, passados quase dois meses, em que não me acordem os pesadelos do teu fim.

Agora vou correr um pouco, muito devagarinho não me vá dar o badagaio numa altura tão pouco propícia, e durante uma ou duas horas: acontece até que, sempre que arranjo coragem para o fazer, a hipertensão se esconde por uns tempos e tu regressas ao meu sorriso.

Muitas festas na tua barriguinha branca, querido.

quarta-feira, 14 de março de 2012

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A vida é o prémio repetido do que já não somos. Quando penso em nós, já morreste e morri.

quinta-feira, 8 de março de 2012

L. C. - HAB. LIT. (08-03-2012)

Licenciatura: Um Pinguim na Garagem (2003, publicado em 2009);
Mestrado: (2008, romance, na gaveta, à procura de nome);
Doutoramento : (2011, romance, na gaveta, merece tanto como o anterior).

Entretanto, poesia. E essa é a vida.

domingo, 4 de março de 2012

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Dizem os físicos que andar é empurrar o planeta para trás. Por isso, anda. Corre mesmo. Talvez com a tua ajuda lhe possamos reverter o sentido.

sábado, 3 de março de 2012

23.02.2012 - 02.03.2012

Esta gripe lembra-me a de ano e meio atrás. Então foi quase um mês de cama, a de agora vai ainda na semana e pouco. Mas a outra não custou nada, estiveste sempre ao meu lado e aconchegavas o teu corpo quente e peludo à minha febre.

Não tenho corrido e creio bem que não vou cumprir a promessa que te fiz de melhorar os meus tempos no prazo de um ano...
Também não tenho lido, sou um leitor cada vez pior. Agora dizem muito por aí que é preciso ler muito para escrever bem. Balelas. É preciso ler muito para se estar actualizado mas não para se escrever bem. O Camões não deve ter posto os olhos em mais do que meia dúzia de bons livros. E o Platão, quanto terá lido? O que é preciso é ler duas ou três coisas muito boas e estar atento ao mundo.

A mãe não chegou a ser operada: chegaram à conclusão de que estava anémica e a operação era um risco. Agora, só quando os índices de hemoglobina subirem é que volta a ser internada.

A adopção por homossexuais chumbou no parlamento. Das duas, uma: ou a maior parte dos deputados considera a homossexualidade uma doença ou não tem coragem para ser impopular.

Até para a semana, querido.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

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Muita vez me diz minha mãe que mais vale cair em graça que ser engraçado. Mas nunca me tinha dito que, neste país, cair em graça não é fruto do acaso mas benesse de quem pode. E foram precisos 45 anos para eu o descobrir com todas as letras.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

um mês

Sem vontade nenhuma para viver. Será que isto se arrasta muito mais? Se o coração me não falhar antes, alguma coisa acontecerá a apressar o fim. Foi crescendo o esforço que toda a vida me susteve, abeiro-me da exaustão.
Ontem fez um mês que morreste, eras uma das minhas principais bengalas. Quantos suspiros de resignação, meu amor.
Por enquanto, a mãe ainda precisa de mim. Mas a imagem antiga em que aponto uma pistola à cabeça e disparo... repete-se agora várias vezes ao dia.

Não sei se vou acabar mal, mas sei que vou acabar em breve.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

15.02.2012 - 22.02.2012

Pensava que era precisa muita paciência para esperar a vez nos hospitais, mas muita paciência não chega. Na última semana, eu e a mãe fomos quatro ou cinco vezes ao Santa Maria - e em nenhuma das vezes esperámos menos de cinco horas. Hoje, apenas para mostrar um ecocardiograma ao médico: parece estar tudo menos mal no coração, o que é importante saber antes da operação ao cólon - ligeiros problemas na aorta e na mitral (a mitral parece andar a perseguir-nos), que pareceu-me serem comuns na sua idade.

Estou a tentar preparar-me para a meia-maratona de Lisboa mas sem muita ambição: só quero baixar da 1h50 e disseram-me que o meu objectivo está no papo se já fiz 1h55 em dezembro .

Sem ti, para que serve a minha mão esquerda? Agora levo-a sempre no bolso quando passeio o Bê-Dê.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

piegas

Luís Caminha é piegas
quando chora o desamor,
o adeus, as noites incertas
e este azar que se instalou.

Apara em paz as afrontas
e deixa ir tudo o que parte
sem levantar muitas ondas
nem queixa que aos grandes farte.

Luís Caminha não gosta
é que o chame de piegas
esse tipo da fatiota
que tanto o enterra na merda.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Corte nas calorias

Preocupada com a nossa saúde, a Mars, fabricante dos chocolates Mars e Snickers, vai cortar nas calorias. Como? Diminuindo-lhes o tamanho. Claro que ao apreciador que quiser dar o antigo número de dentadas, ficar-lhe-á mais cara a vontade. Digo eu, que já vou percebendo um pouco destas coisas.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

11.02.2012-14.02.2012

Chamava-se 1ª Corrida da Nauticampus, mas isso pouco importa, eu só queria estar acompanhado durante 10 quilómetros. Éramos 600 e fiquei no 229º lugar da geral, 12º entre as mulheres :). Com a falta de treino, a desmotivação, enfim, a tristeza em que ando, foi muito bom. Longe dos 46 minutos que cheguei a fazer antes da tua morte, mas  abaixo dos 50; e nesses menos de 50 nunca deixei de me repetir 'menos de 50 para ti, Barbinhas'. O último quilómetro foi a deitar os bofes por fora e quando a uns duzentos metros vi a meta, acelerei em pura fermentação. Foi muito, muito difícil, vale bem uma lambidela de agradecimento na minha cara também barbuda, não vale? Para o registo: 49m26s.

Ainda não te disse, mas anda à nora uma válvula do meu coração. Fui proibido de correr e aconselhado a ir à faca. Nada disso, eu sempre gostei de jogar no limite.

Tenho passado as manhãs com a mãe entre hospitais e centros de saúde. Mas as coisas parecem estar controladas. Depois de amanhã voltamos ao Santa Maria.

O Bê-Dê manda-te um latido grande, querido. Do coração.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

01.02.2012 - 10.02.2012

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Vou-me habituando a viver sem ti, umas vezes com um sorriso pelos dias bonitos em que me acompanhaste, outras com o arrependimento de nem sempre ter sido o melhor dos teus amigos. Cada vez me custa menos estar na cama porque a cama é o lugar onde te sinto mais próximo. Era aqui que nos demorávamos tantas horas da noite e tantas horas de sol, de calores encostados e longos abraços.

Aparentemente, a mãe não está tão mal como inicialmente pensámos. Em princípio na terça-feira vamos falar com o cirurgião que a vai operar.

Estou com hipertensão, excesso de colesterol, triglicéridos a mais. Não deixa de ser um pouco injusto para quem não come carne... Será do queijo. E da fruta. E do álcool. Enfim, será dos meus excessos.

Entretanto voltei a correr um pouco, na semana passada. Depois parei, perdi-lhe mesmo o gosto depois de teres partido. Mas amanhã, mesmo sem treino vou tentar fazer uma prova de 10 km. Se conseguir acordar a tempo. Custa-me acordar porque acordar é regressar à tua ausência.

Hoje fui a uma reunião para acertar a publicação do nosso segundo romance. Sem grandes expectativas, já não tenho idade para achar que tenho importância.

Tenho tantas saudades tuas, meu amor. Anteontem sonhei contigo e eras uma criança que me dava a mão.

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Ando à procura da minha mentira.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

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Morrer é só não ser visto, dizia o outro. Mas eu só tenho a certeza de que não ser visto é morrer.

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O homem acordou com vontade para mexer no dia. Mas não valia a pena: fora do seu eixo, a terra já corria desgovernada para longe do medo ao sol.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

24.01.2012 - 31.01.2012

Faz hoje uma semana. Telefonaram-me às 11h a dizer que pioraras e que o teu coração não resistira. Eu estava pronto para te ajudar a morrer, queria tanto que morresses nos meus braços, como a Bonita e o Piloto, quando o sofrimento era visível nos seus olhos e essa era a melhor solução. Mas convenceram-me de que ainda podias ser salvo, que ainda não tinha sido feito tudo para te salvar. E acabaste por morrer sozinho.

Ainda não é fácil viver em casa e não me apetece ir para a cama sem lá estares. Tento prender os olhos à secretária mas eles escapam-me pelo caminho que leva ao teu sofá preferido, aquele onde estendias a tua preguiça de gato e de onde controlavas os meus movimentos. Tento manter a mão esquerda presa sob o edredom mas passo a noite a soltá-la para te procurar. Tento encontrar-te no Bê-Dê mas lembro-me sempre dos ciúmes que tinhas quando as minhas carícias iam para ele na mesma medida que para ti. 

Não corria desde que adoeceste, queria passar contigo todo o tempo que pudesse. E ainda não voltei a correr. Sinto-me culpado por os meus rins funcionarem tão melhor que os teus. Mas daqui a uns tempos tenciono voltar à estrada para bater todos os recordes que me permitam a idade e o corpo. Ontem imaginei que o meu coração parava como o teu ao cruzar a meta de uma qualquer maratona e isso consolou-me: é um modo simples e pouco rebuscado de chegar ao que sempre quis. Por isso, por que não esticar os meus limites? Quero baixar dos 40 minutos nos 10 quilómetros, rondar a hora e trinta na meia-maratona, roçar as três horas e meia na maratona. Dás-me um ano para isso tudo?

Entretanto, e umas horas antes de morreres, pouco depois da última visita que te fiz na noite de segunda-feira, descobri que a mãe pode estar muito doente. Ainda não sabemos quanto, andamos de análise em análise e de esperança em esperança. Amanhã vou com ela ao médico para agendarmos os próximos passos.

Na sexta-feira passada, recebi mais uma daquelas cartas antigas a dizer que o nosso segundo romance foi analisado com todo o cuidado mas que não está na linha editorial de quem não o analisou; antes, já tinha recebido outra a dar-me os parabéns pelo texto e a manifestar-me o lamento pela sua ineditabilidade. Dei comigo a sorrir de como sou estúpido, de como por uns momentos e há pouco mais de dois anos pensei que coisas destas nunca me voltariam a acontecer.

Como sabes, sempre me aborreceram notícias sobre os poetas que ganham prémios graças à sua magnífica resistência em poetizar, sempre gozei com a ingenuidade dos prosadores que ganham prémios e dizem procurar a palavra certa para cada pensamento, sempre li algumas páginas dos livros que ganham prémios e cujo sucesso não consigo perceber.
Mas cada vez leio menos. Esta semana? Nada. Os escritores dizem que a leitura e a escrita são o seu refúgio. Talvez seja por isso que eu não sou um escritor a sério: quando não estou bem, mal leio; quando não estou bem, escrevo tão mal.

Do resto, tu já sabes. Há uns sete meses que não me pedem traduções e as últimas notas que tinha, gastei-as para pagar a tua última solidão no hospital veterinário. Mas não te sintas mal com isso; quando o banco vier buscar-me a casa, e embora não tenha outro remédio senão entregar-lha, vou ladrar-lhes até não conseguir mais. E em tua honra hei-de morder-lhes os calcanhares. Ah, se hei-de.

A Miúda e a Sereiazinha mandaram-te beijinhos há dias e olha que foram bem maiores e sentidos do que os que mandaram para mim. Recebe-os, está bem? Onde estiveres, recebe-os.

Até para a semana, meu querido Barbinhas.

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Por instantes, a minha passagem causou algum aborrimento. E, no entanto, não segurei nada que tivesse resistido à prova da chama. Fui estéril, não tive graça, muito menos caí em graça. Nalgum lugar ficará registado o dia 12 de Abril de 1967 para começo. Com que fim? O de ter fim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

ciclo

à hora em que de morte se beija a noite
a angústia faz-se pequena     tão longe do nome
     indício de adeus sobre o consolo das raízes

mas chegará de novo inteira ao espreitar da manhã

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

barbas (1996?-24.01.2012)

Vazio de ti como dos amores da minha vida. Todos os outros partiram por já me não quererem. Tu não: até ao fim, meu amigo, me deste o teu carinho e me prometeste futuro. Perdoa-me pelas vezes em que não te soube corresponder. Perdoa-me, meu amor.

domingo, 22 de janeiro de 2012

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Dedico o meu segundo romance Aos que traí. Traí porque entreguei tudo - a vida, o amor, a alegria, mulheres, amigos. Traí porque nunca me entreguei.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

o beijo


Nem pestanejava; mesmo quando calmei a procura e me caiu um estrondo na cara, o gritinho no lugar do morto não soprou o seu lugar de esfinge.
A estrada corria-lhe silenciosa sob o artifício das mãos enquanto ao espelho da pala eu examinava se ardia.
Entretanto era Coimbra e a cem metros do fim um semáforo fechava. Olhei-a de lado, pesei quietude, concluí aquiescência, ajeitei-me para outro ensaio.
Já o carro arrancava, já eu dormia para não ter medo. Tentei despertar-lhe a boca. Sem resultado: não creio que tivesse havido beijo. A sua cabeça inclinou-se leve, é um facto, mas para que a avenida não fugisse; e o talvez respirado e húmido da viagem não indiciava luta nem abandono.
Voltei a encostar-me como se costuma, fixando o pára-brisas com perseverança, a dos mortos, a dela. No vaivém das escovas chovia como quando somos tristes.
Segundo estrondo, de novo sem arma. Largou-me à frente da porta, simpática como nunca, sorrindo, «adeus, até amanhã».


Uma semana depois, dentro do carro o silêncio continuava maior.
Imóveis. Carnudos. Procurei. Estrondo.
Chovia e já estávamos parados no semáforo triste. Foi, então, que percebi: os beijos não se roubam, negoceiam-se. Assim, arranquei o braço direito antes de sair e pu-lo no banco traseiro, «Guardas-mo?».


O braço faz falta mas eu quero muito encontrar o beijo. Além disso, há dias deu-se um pequeno desenvolvimento: ajudou-me a enganchar o cinto de segurança e até roçou a mão na minha.
Virei-me para o banco traseiro a espreitar se trazia o braço. Não, talvez estivesse na mala; portanto, só procurei o beijo ao pressentimento do semáforo.
Novo estrondo.
Chovia e eu era maneta. À despedida, pensei que não estava a dar o máximo. Por isso, arranquei a perna esquerda. «Guardas-ma?»
Chovia muito, estava triste como nunca, tinha pena de ainda não ter encontrado o beijo. Encostei-me à parede e fiquei a ver o carro afastar-se: parecia menos vermelho do que habitualmente, talvez por a chuva cair com muita força sobre o tejadilho.
Saltitei.


Ontem estive todo o dia à espera. Telefonei-lhe várias vezes mas só me responde uma voz a dizer que o número não está atribuído.
Que bom, ela ter subido comigo há duas semanas, antes de eu lhe ter entregado a outra perna.
Há pouco, faltou-me bexiga para mais uma gota. Apesar de já não ser tão difícil como a princípio, ainda custa muito arrastar-me até ao quarto de banho e sentar-me na sanita.
Daqui a pouco, deveria ir trabalhar. Mas ainda preciso de uns dias de repouso. Desconfio, também, que é mais fácil encontrar o beijo se ficar em casa, à espera de que ela mo venha entregar.
Chove imenso.
Ainda é noite.
Tenho medo.
(Publicado no jornal universitário A Cabra de 20-10-2011: