ANGÚSTIA E AUTENTICIDADE
"Retrato emocionado de uma vida prestes a despedir-se, espécie de testamento confessional, Um Pinguim na Garagem, romance de estreia de Luís Caminha, ao contrário dos clássicos romances de formação, nos quais se ilustra a integração da personagem principal nas instituições sociais, constitui uma autêntica epopeia psicológica de busca frustrada de uma identidade pessoal, a de Luís, o narrador, filho de Luís pai, meio-irmão de José Luís, o destinatário interno do romance, e amigo de (Luís) Vaz (de Camões), o Poeta.
"Debruçado sobre o tema tradicional da identidade - «Quem sou eu?», pergunta o narrador - Um Pinguim na Garagem, quanto à forma, evolui segundo uma espiral de círculos concêntricos, mantendo permanentemente a questão da identidade como tema central, adensando-a, porém, em cada capítulo, segundo perspectivas, situações existenciais e momentos temporais diferentes. No entanto, estruturante à totalidade do romance, evidencia-se como omnipresente o par categorial psicológico e existencial da angústia e autenticidade, de cuja polaridade nasce o conteúdo do romance.
"Com efeito, dificilmente se lê este romance sem que a angústia do narrador, manifestada vertiginosamente em todas as suas páginas, não perpasse para a consciência do leitor, inquietando-o e perturbando-o, como, aliás, já acontecera com O Homem Duplicado, de José Saramago, romance com outro enredo, mas de temática semelhante.
"De facto, a angústia presente no coração do narrador de Um Pinguim na Garagem nasce da constatação da ausência da identidade singular específica da sua personalidade. Falta ao narrador a plenitude de uma personalidade própria (boa ou má; positiva ou negativa, mas diferente); dito de outro modo, falta-lhe vida autêntica; Luís, o filho, tem consciência de que é um clone de Luís, o pai, que tiranicamente velava pela mãe e pelo filho; clone não só biológico (é um dos primeiros seres humanos clonados), mas sobretudo psicológico; Luís resiste à replicação da identidade do pai, o incêndio na casa de infância provoca-lhe um sorriso, como se o desaparecimento da casa findasse com o martírio da obediência ao pai; a separação entre os pais reforça o poder de Luís pai sobre Luís filho; à semelhança física, acresce a semelhança social, Luís desorienta-se, desconhece que caminho traçar na vida, arrasta a vida, vai à tropa, tira um curso, sente-se incapaz de sair de casa do pai, tem de ser Paula, a namorada, a pressioná-lo a juntar-se-lhe e a alugarem outra casa, um cubículo onde recebem os amigos e acolhem dois cães abandonados; prestes, Paula satura-se de Luís, de trabalho incerto (traduções e explicações), sai de casa, Luís, de existência infeliz, socorre-se de outro Luís, o Vaz, ambos desintegrados socialmente, ambos indivíduos angustiados, ambos seres que não se realizaram autenticamente.
"É justamente neste ponto que Um Pinguim na Garagem abandona o estatuto de mero romance psicológico, estruturado entre dois sentimentos opostos - a angústia e a autenticidade -, e assume um explícito papel cultural, identificando o fracasso psicológico e social experimentado pelo narrador com idêntico fracasso sentido por Camões. Neste sentido - um sentido eminentemente histórico e cultural -, o narrador eleva Camões a poeta exemplar da sua vida, não pelos seus feitos gloriosos, mas pela assunção consciente, expressa em forma de poesia, da angústia comum à grande, grande maioria dos portugueses.
"Camões, neste romance, não é só Camões, o poeta individual falecido em 1580; é igualmente, por antonomásia, o referencial de um povo que morre frustrado, incapaz de se realizar, de viver a vida autenticamente. Camões somos todos nós. A imagem de Luís filho como «clone» biológico e social de Luís pai significa, enquanto imagem literária, uma violenta e sofrida denúncia: replicamo-nos mutuamente, imitamo-nos mutuamente, incapazes de nos assumirmos como seres livres, isto é, autênticos, donos da nossa própria vida, dotados de ideias singulares, buscando permanentemente por empréstimo «pais» que pensem por nós. Neste sentido, em Um Pinguim na Garagem a figura de Camões parece encarnar de um modo paradigmático a relação cultural intemporal (ou de tempo longo), infeliz e paradoxal entre o português e o seu país, representado por um Estado e uma classe política adversos a beneficiar a população das condições «normais» de existência.
"Sem que se revele o desenlace do romance, chama-se a atenção para que no final ganha Luís pai, isto é, o Estado, as instituições, o Poder, os «poderosos» de cada dia; no final, perde Luís filho, isto é, a população, incapaz de atingir um estado de existência social «normal». Resta a Luís filho tomar uma decisão...
"Belíssima estreia literária."
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