quarta-feira, 13 de março de 2013

* manuscrito de henoch - excerto 3 (1993)

      * A primeira versão do "Manuscrito de Henoch - 6 excertos" data de 1993 e tinha o título de "As 11 cartas de
           Henoch ao seu amor perdido".
Modifiquei-a (encurtei-a) em 2006. É o meu texto em prosa mais antigo; pelo
           menos dos que foram perdoados pelo pequeno incêndio que destruiu grande parte do que escrevi na minha

           juventude.

O poeta entretinha-se com as palavras e jogava-as umas com outras, estas contra aquelas; e, às vezes, escondia-as até dele próprio. Fazia de um som um delírio, maravilha de uma palavra, um mundo de uma ideia. Inventava o mundo. Toda a gente o faz, dando nomes às coisas. Mas ele tinha a consciência de que o fazia e era mais atento que todos na arte de dar nomes aos nomes. Porque os nomes também são coisas, para lá das coisas de que são nomes.

Nunca foi diferente. Muito antes de terem perdido o jardim, já meus avós sabiam disto. Nos reflexos das águas tranquilas os surpreendera a consciência de um poder de que apenas desconfiavam. Por mais que quisessem ou lhes conviesse, não podiam ser acessórios da beleza ou da verdade, do que se convencionou chamar paraíso. Descobriram o sonho e o desejo, o desalento e o desassossego, a procura; que o paraíso não lhes sobrevivia, era um projecto, eram eles, a memória, o futuro, o tempo. E o bom deste paraíso tão relativo, tão deles, era o acaso, a implaneabilidade, o não poderem dizer que amanhã vai ser melhor, pior ou diferente. Mas foi nesta incerteza que as palavras se foram aconchegando, com todo o aroma de previsibilidade, como que a dar uma direcção, ainda que temporária, um sentido, ainda que mutável, às vidas; as palavras, nas asas do perdão e da esperança, preparando, na falsa cristalização do tempo, a sua fluidez; as palavras – esse paraíso, como tão bem sabia o poeta. Porque para irmos para onde não sabemos é necessário pensarmos que sabemos para onde vamos.

Por isso não lhes foi difícil perder o jardim, ainda que o arrependimento chegasse muitas vezes ao fim da tarde, embrulhado no suor do cansaço. Arrependimento do rumo escolhido (que, apesar de tudo, esteve sempre fora do seu controlo), não da escolha de rumo.

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