quarta-feira, 27 de março de 2013

inventário (joaquín sabina)

 
As coisas que me dizes quando calas,
os pássaros que aninhas entre as mãos,
a falta do teu corpo nos lençóis,
o tempo que gastámos a insultar-nos,
o temor à velhice, os almanaques,
os táxis que corriam espavoridos,
a dignidade entregue em qualquer parte,
o violinista louco, os agasalhos,
as luas que beijei eu nos teus olhos,
o denso olor a sémen derramado,
a chacota da história à nossa volta,
as cuecas que esqueceste no armário,
o espaço que preenches na minha alma,
a boneca escapada ao incêndio,
a loucura espreitando atrás da porta,
a batalha diária entre dois corpos,
a minha indignação contra as touradas,
o pranto nas esquinas do olvido,
a cinza ainda à vista, os despojos,
o filho que jamais pudemos ter,
o tempo para a dor, as depressões,
o gato que miava no telhado,
o passado ladrando como um cão,
o exílio, a fortuna, os retratos,
a chuva, o desamparo, os discursos,
as convenções que nunca nos uniram,
a redenção que busco no teu corpo,
o teu nome na capa do caderno,
sempre o meu coração no teu respiro,
a cela que ocupaste na prisão,
minha barca à deriva, esta canção,
o bramido do vento no arvoredo,
o silêncio que esgrimes como um muro,
tantas coisas bonitas hoje mortas,
o tirânico império do absurdo,
os obscuros recantos do desejo,
o teu pai, que morreu eras menina,
o beijo apodrecido em nossos lábios,
as paredes caiadas, a indolência,
a luz dos pirilampos sobre a praia,
o naufrágio de todas as certezas,
o derrube de deuses e de mitos,
a escuridão em volta como um túnel,
a cama navegando no vazio,
o tugúrio que um dia veio abaixo,
o sexo resgatando-nos do tédio,
o grito interrompido, a madrugada,
a fogueira do amor que nos queimava,
a insónia, a sorte, as pontas dos cigarros,
a árdua aprendizagem do respeito,
as feridas que já nem Deus nos tira,
a merda que arrastamos sem remédio,
tudo o que nos foi dado e retirado,
os anos que passaram tão depressa,
o pão que partilhámos, as carícias,
o peso transportado em nossas mãos.
 

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