* A primeira versão do "Manuscrito de Henoch - 6 excertos" data de 1993 e tinha o título de "As 11 cartas de
Henoch ao seu amor perdido". Modifiquei-a (encurtei-a) em 2006. É o meu texto em prosa mais antigo; pelo
menos dos que foram perdoados pelo pequeno incêndio que destruiu grande parte do que escrevi na minha
juventude.
Sempre temera a
morte. Ainda criança, já meu pai acordava em sobressalto, mesmo que sem
pesadelo, preocupado com a perda de tempo: mas não podia evitar perdê-lo,
porque, como ele dizia, o tempo contado implica que nunca saibamos o que fazer
com ele. No entanto, o trabalho moía-lhe o corpo e adormecia-lhe o temor.
Durante anos,
quando lhe falavam do futuro, a ideia mais bonita girava em torno de melhores
colheitas. Tudo o resto eram necessidades quotidianas.
Um dia (e estas
coisas acontecem quando o amor faz esconder a morte, e, mais que o amor, o
encanto), começou a sonhar. Primeiro, o sonho trouxe-lhe a inveja: porque a
necessidade de tempo fazia a sua falta e porque o seu esforço, tornado de
repente mais árduo, não era recompensado. Depois do crime e, infelizmente, só
depois, juntamente com o remorso, e talvez por causa dele, começou a saber de
coisas grandes a fazer, que o prolongariam e dariam um sentido a todos os seus
momentos.
Se bem que aqui
estejamos eu e os meus irmãos como prova da sua existência, nunca foi essa a
forma de continuidade que mais o entusiasmou. Por isso, foi incansável na
construção da cidade e na transmissão dos seus pensamentos; por isso, absorvia
as palavras e os actos dos outros como uma esponja. Era grande a dar e a
receber.
Alterou a vida
de todos. Mas, perto do fim, começou a duvidar da bondade dos seus actos. É o
preço da ousadia: se a dúvida não vem antes, vem, muitas vezes, depois da
decisão. Começou a ficar mais cansado e regressou à sua velha preocupação com a
morte. Quando falavam com ele, quando via um sorriso, quando observava um
movimento... sentia-se triste. Mal escutava, prisioneiro de gestos que corriam
contra o tempo... de olhos que se regalavam e que se contraíam e que se
alheavam e que se fixavam, que insinuavam...; de bocas que sorriam, que
embeiçavam, que gritavam e que calavam... Num instante tudo se acabava. E era
estranho olhar para aquelas caixas de vida sem vida, paradas, sem resposta...
Caixas que traziam o rótulo: «Fora de prazo. Amanhã vai para a lixeira.» E
algumas dessas caixas foram gente que ele amou.
A caixa que era
o seu corpo era arrastada pelo tempo, Deus esquecera-se de a mandar para a
lixeira. E pensava isso com a naturalidade de quem tudo perdeu, de quem já nada
quer. Sem uma lágrima sequer. Desiludido. Preso no abismo da insensibilidade.
Por tudo
isso, partiu. E porque nunca quis testemunhas da sua morte. O tempo juntara ao
seu velho medo de morrer o medo a que o vissem morrer. A memória das pessoas
não devia estender-se a um corpo morto.
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