* A primeira versão do "Manuscrito de Henoch - 6 excertos" data de 1993 e tinha o título de "As 11 cartas de
Henoch ao seu amor perdido". Modifiquei-a (encurtei-a) em 2006. É o meu texto em prosa mais antigo; pelo
menos dos que foram perdoados pelo pequeno incêndio que destruiu grande parte do que escrevi na minha
juventude.
Foi num fim de
tarde em que as nuvens se começaram a juntar sobre as nossas vidas e a minha
mãe cozinhava a caça do dia. De repente, ele endireitou-se e atirou os olhos,
muito arregalados, para um ponto do céu. Virou costas para não acreditar,
meneou a cabeça para não poder ser e, aterrorizado, frenético, desatou a
trabalhar na velha casa que o bom tempo nos deixara descuidar.
Não teve mais
de dois dias, mas as primeiras chuvas encontraram a resistência de um telhado
novo e quatro paredes reforçadas. Enquanto se manteve connosco, ele
confidenciava-nos que o único perigo vinha da velha árvore, da sua ramada e das
suas raízes – que, de facto, foram permitindo o humedecimento das paredes e dos
ossos e deram alento à simpática proliferação dos fungos pela casa e pelos seus
habitantes.
Foram noites e
chuvas que perduraram tanto como as vidas dos sapos e das salamandras.
Fizeram-se lagos nos lugares mais baixos e os cursos de água transbordaram,
arrastando tudo o que os ladeava. Por muito tempo, água, trovões e relâmpagos
foi tudo o que vimos e ouvimos e muito do que nos ocupou o pensamento.
O pai, que
sempre dizia que não há para onde fugir quando o céu se põe assim, e que, ainda
no fim do primeiro dia, chamara por Deus – deixou que, pouco a pouco, os seus
olhos embaciassem e nos atravessassem e a tudo o que estivesse perto. Não creio
que fosse ideia que crescesse numa lua, nem em duas nem em três, mas ficámos
todos surpresos quando um dia abandonou mulher e filhos.
Nunca
mais foi visto.
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