domingo, 17 de março de 2013

* manuscrito de henoch - excerto 6 (1993)

     * A primeira versão do "Manuscrito de Henoch - 6 excertos" data de 1993 e tinha o título de "As 11 cartas de
          Henoch ao seu amor perdido".
Modifiquei-a (encurtei-a) em 2006. É o meu texto em prosa mais antigo; pelo
          menos dos que foram perdoados pelo pequeno incêndio que destruiu grande parte do que escrevi na minha

          juventude.


Foi num fim de tarde em que as nuvens se começaram a juntar sobre as nossas vidas e a minha mãe cozinhava a caça do dia. De repente, ele endireitou-se e atirou os olhos, muito arregalados, para um ponto do céu. Virou costas para não acreditar, meneou a cabeça para não poder ser e, aterrorizado, frenético, desatou a trabalhar na velha casa que o bom tempo nos deixara descuidar.

Não teve mais de dois dias, mas as primeiras chuvas encontraram a resistência de um telhado novo e quatro paredes reforçadas. Enquanto se manteve connosco, ele confidenciava-nos que o único perigo vinha da velha árvore, da sua ramada e das suas raízes – que, de facto, foram permitindo o humedecimento das paredes e dos ossos e deram alento à simpática proliferação dos fungos pela casa e pelos seus habitantes.

Foram noites e chuvas que perduraram tanto como as vidas dos sapos e das salamandras. Fizeram-se lagos nos lugares mais baixos e os cursos de água transbordaram, arrastando tudo o que os ladeava. Por muito tempo, água, trovões e relâmpagos foi tudo o que vimos e ouvimos e muito do que nos ocupou o pensamento.

O pai, que sempre dizia que não há para onde fugir quando o céu se põe assim, e que, ainda no fim do primeiro dia, chamara por Deus – deixou que, pouco a pouco, os seus olhos embaciassem e nos atravessassem e a tudo o que estivesse perto. Não creio que fosse ideia que crescesse numa lua, nem em duas nem em três, mas ficámos todos surpresos quando um dia abandonou mulher e filhos.

Nunca mais foi visto.

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